Dar o coração perante o corpo ou Dinâmicas da misericórdia no romance de Lídia Jorge

Resumo

O principal propósito do nosso artigo é analisar algumas representações do corpo “envelhecido” no romance Misericórdia de Lídia Jorge, compreendendo de que modo a autora portuguesa exerce, pela escrita, uma forma de resistência face a determinados preconceitos sobre a terceira idade. Para o efeito, dividiremos o presente estudo em duas grandes partes, a saber: uma primeira, na qual nos debruçaremos sobre o corpo entendido como algo meramente orgânico (ou até meramente mecânico), e uma segunda, no âmbito da qual nos concentraremos nas passagens da obra em que o corpo é descrito como um recetáculo de vida, podendo o seu aspeto estético deixar transparecer uma interioridade que, apesar da passagem do tempo, continua a latejar. Defenderemos, de igual modo, que a palavra “misericórdia” assume, no livro em apreço, dois significados complementares, que a polissemia do vocábulo prevê: trata-se, por um lado, de se compadecer diante da condição alheia e, por outro lado, de desferir um golpe final em combate. Com o intuito de conferir espessura teórica à nossa contribuição e de perceber que ideias podem estar associadas ao dito “envelhecimento”, recorreremos a bibliografia francesa – tendo o tema do corpo sido amplamente tratado por intelectuais franceses –, nomeadamente ao extenso ensaio de Simone de Beauvoir intitulado La vieillesse. Numa era em que a esperança média de vida tem aumentado consideravelmente, tanto a literatura quanto a filosofia se propõem abordar, cada qual a seu modo, uma temática que atravessa várias sociedades contemporâneas. O nosso escopo é, portanto, aprofundar o tratamento dessa questão societal à luz da obra de Lídia Jorge, estabelecendo pontes entre a produção da escritora e as produções de pensadores franceses – dando mostras, outrossim, da imensa potencialidade que Portugal e França exibem para dialogar sobre temas comuns às suas respetivas realidades.